Géssica Brandino 16 Set 2019 (atualizado 19/Set 17h17)
A cartunista falou ao ‘Nexo’ sobre como o humor gráfico evoluiu no Brasil e como ele se mantém vivo em tempo de memes e governo Bolsonaro
CHARGE DE LAERTE PUBLICADA NO JORNAL FOLHA DE S.PAULO NO DIA 30 DE JULHO DE 2019
De origem francesa, a palavra charge significa carga ou ataque. No Brasil, ela surgiu em 1837, quando o pintor e poeta Manuel de Araújo de Porto Alegre publicou de forma avulsa, no Rio de Janeiro, a sátira “A campanha e o cujo”, que denunciava o pagamento de propina a um funcionário do governo ligado ao Correio Oficial. Em 1844, é lançada a primeira revista com publicação de charges no país, a “Lanterna Mágica”.
De lá para cá, a charge ganhou espaço nos periódicos e se tornou um meio de retratar as questões políticas de cada época, unindo observação e análise em críticas do contexto social do país. No período da ditadura militar, Henfil passou a enterrar personalidades no “Cemitério dos Mortos-Vivos”, tirinha de seu personagem Cabôco Mamadô. Críticas também aparecem nas obras de Millôr Fernandes, Angeli, Glauco e Laerte Coutinho.
Uma das mais importantes e premiadas cartunistas brasileiras, Laerte iniciou seu engajamento político na década de 1970 e colaborou em publicações como O Pasquim, Correio Braziliense e Zero Hora. Na década de 1990, assinou roteiros para os programas TV Pirata e Sai de Baixo, da TV Globo. A partir de 2004 passou a se engajar em questões de direitos humanos e gênero. Em 2009, a cartunista se assumiu como trans.
Entre personagens famosos, se destacam os Piratas do Tietê, Deus, Overman e Hugo Baracchini, seu alter ego, que vivencia os questionamentos de Laerte durante o processo de transição de gênero e se torna Muriel, uma personagem que passa a problematizar questões do universo trans. Num contexto de internet, marcado por memes, Laerte viu suas charges atingirem um público ainda mais amplo.
Após o prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, censurar no dia 5 de setembro um quadrinho da Marvel à venda na Bienal do Livro por causa de um beijo gay, Laerte e outros cartunistas da Folha de S.Paulo se manifestaram por meio de ilustrações.
Voz crítica ao governo de Jair Bolsonaro, Laerte conversou com o Nexo por telefone, no dia 12 de agosto, sobre a evolução do papel da charge política no Brasil e como ela se encaixa em um contexto de humor político cada vez mais marcado pela proliferação de memes.
No século 21, o que mudou na forma de fazer humor político no Brasil?
LAERTE COUTINHO Na charge política o que muda é o advento, pela primeira vez, de um operário na Presidência da República. Essa é uma mudança bastante significativa. Se você associar a charge política ou a posição política dos autores de charges com alguma coisa identificada com a esquerda, por exemplo, ou uma simpatia por situações onde um operário chegaria à Presidência, você fatalmente vai chegar à conclusão que as charges políticas passaram por um amortecimento na agressividade, vamos assim dizer, em relação ao presidente. Foi uma época em se começou a falar de charges a favor. Na verdade, eu não acredito que tenha havido muito. Eu acho que o governo Lula e o PT contaram com uma oposição bastante ativa de chargistas desde o começo. Mas é um diferencial.
Pega [antes do] governo do Fernando Henrique Cardoso, havia também diferenciais bastante grandes, porque a gente tinha passado por um período de ditadura, censura. Essa própria ditadura passou por fases que também marcaram a história da charges de forma muito clara, como por exemplo o AI-5, que foi uma fronteira. Estabeleceu um novo código, que era o código do medo. Ali praticamente teve fim uma determinada tradição da charge política no Brasil, representada por Jaguar, Ziraldo, que mais tarde depois vai ser recuperada um pouco no Pasquim, mas já há um outro clima na imprensa. Depois do AI-5 as charges políticas passaram a ter outro tipo de comportamento, passaram a registrar as coisas de uma outra forma.
O que não mudou?
LAERTE COUTINHO Talvez o trabalho do chargista ainda deva muito aos recursos que eram cultivados pela charge até o século 19. Estas coisas mais ou menos óbvias: o poder de você conseguir graficamente fazer uma ligação, uma conexão entre metáforas, alegorias e uma imagem. Isso aí tem um poder extraordinário, ou até a possibilidade de usar caricaturas ou de reduzir situações complexas a uma síntese significativa que responda a uma determinada necessidade política daquele momento. Essas coisas são linguagens conquistadas desde o século 19. Talvez a charge hoje ainda deva muito do seu poder a esses recursos, que são razoavelmente eternos.
Como a charge brasileira se comportou em momentos de autoritarismo?
LAERTE COUTINHO Eu acho que uma das maneiras foi usar, assim como fazem outras linguagens artísticas, metáforas, simbolismos variados, recursos gráficos e expressivos que burlassem a censura. A ideia de burlar a censura foi muito frequente na cultura brasileira nesse período mais agudo e eu acho que ela deixou marcas, mesmo quando a própria ditadura começou a dar sinais de que ia abrir espaço para o diálogo, no governo Geisel.
Como a charge reage diante do atual governo brasileiro?
LAERTE COUTINHO Tem uma forma óbvia que é fazer uma espécie de contraponto à piração do discurso do Bolsonaro. O Bolsonaro usa isso intencionalmente. Ele é realmente uma pessoa grossa, estúpida e mal-encarada, faz questão de cultivar esse tipo de coisa e falar as imbecilidades que ele tem falado. Acho que em grande medida as pessoas reagem a isso, e eu acho que isso é uma coisa esperada. A minha opinião pessoal é que os chargistas têm feito o que podem [risos]. Mas é difícil… Quando você olha a produção de charges pré AI-5 você nota ali a existência de um chargista que é quase um colunista de jornal. Ele tem um espaço de opinião e essa função varia muito dos jornais. Não sei dizer se a gente, os chargistas, estamos respondendo de forma eficiente, mas isso também me faz pensar o que é uma charge eficiente.
De que forma a charge ajuda o público a refletir sobre a situação política?
LAERTE COUTINHO A charge política é uma das formas do humor gráfico. O humor, quase por definição, usa como combustível as ideias que já existem. É por causa dessas coisas que, muito frequentemente, o humor escorrega para dentro de visões preconceituosas. Isso não tem muito a ver com o tema de charge política, mas tem a ver com a ideia do que se espera de uma charge. Não é derrubar o governo, porque ela não tem calibre para isso, nem mudar opinião, porque ela trabalha com contextos que já existem. Você não faz uma charge metendo o pau no Bolsonaro para ser publicada com sucesso em um veículo que claramente faça o jogo do governo. Lá você vai fazer sucesso com outro tipo de humor. Se não é derrubar o governo nem mudar a cabeça das pessoas, o que estamos fazendo aqui? [Risos] Às vezes, eu me faço essa pergunta. Eu acho que muitas vezes o papel da charge é reforçar determinadas posições. Que os chargistas tenham posições políticas é mais ou menos reconhecido. Acho difícil você encontrar um chargista ou uma chargista que tenha posição de neutralidade e equidistância. Não tem isso.
CHARGE DE LAERTE PUBLICADA NO JORNAL FOLHA DE S.PAULO NO DIA 9 DE ABRIL DE 2019
Como a charge política mudou com a internet e com a disseminação de memes?
LAERTE COUTINHO São os memes que são derivações da charge. O meme faz parte um fenômeno de acesso ampliado à linguagem da agressividade e do grafismo. Os memes são uma coisa tipicamente da internet, mas eles não foram criados na internet. Nos anos 70 tinha uma coisa que era muito manjada que se chamava “foto-fofocas”. Eram memes. As pessoas pegavam fotos de políticos ou de artistas e punham balões de falas, com pequenos textos. Era a própria filosofia do meme. Só que isso hoje é muito fácil de fazer. Se você tem uma ideia que é rastilho, pólvora, que pega na veia de algum sentimento que está muito vivo naquele momento, o meme viraliza mesmo e vai longe. É difícil fazer isso trabalhando dentro do registro que eu trabalho, que é de charges, de cartoons, de desenhos feitos para a mídia impressa. Esse tipo de linguagem marca muito a pessoa que está fazendo. Eu não penso em memes que viralizam. Eu penso em cópias impressas. Na verdade, minha cabeça trabalha ainda com esse sistema. Quando eu vejo que uma tira que eu publiquei alcançou 10 mil likes, por exemplo, eu piro! Ou até quase 100 mil visualizações… Nem nos mais loucos sonhos dos anos 80 eu achava que ia conseguir isso. É bem diferente. A linguagem dos memes carrega um aspecto do amplo alcance. Não diria democratização da linguagem, mas uma acessibilidade ampliada dos recursos de linguagem. Eu não sei se alterou tanto a natureza do trabalho do chargista.
Quais características marcam a linguagem da charge?
LAERTE COUTINHO Há possibilidades que o humor gráfico tem que dificilmente outras expressões conseguem. Dificilmente o que um chargista consegue quando é bem-sucedido um colunista consegue. Às vezes, os colunistas falam assim: “Puxa, gastei não sei quantos toques, não sei quantas linhas pra falar uma coisa que o chargista fez com dois traços”. A imagem consegue determinado resultado ou efeito que foto não consegue, que texto consegue. São as coisas específicas de cada linguagem.
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